1- INTRODUÇÃO
Após a declaração de constitucionalidade da Lei Complementar nº 116/2003 pelo STF, no julgamento da ADI 3089, os Municípios começaram a se mobilizar para exigir o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza -ISSQN de notários e registradores. Tal cobrança, no entanto, envolve a discussão de diversas questões que não devem ficar sem resposta.
Pretende o presente artigo analisar profundamente o tema, apresentando a mais recente jurisprudência e sugerindo a notários e registradores algumas medidas que visam a garantir a sobrevivência e a dignidade do exercício da função notarial e de registro. Trata, ainda, da questão do repasse ao usuário do serviço do valor correspondente ao ISSQN.
2- DESENVOLVIMENTO
2.1 – O ISSQN e sua incidência sobre atos “cartorários”
Nos termos do art. 156, inciso III, da Constituição da República de 1988 – CR/88, “Compete aos Municípios instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”. A CR/88 reservou “[…] à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes” (art. 146, inciso III, alínea “a”).
A Lei Complementar nº 116/2003, instituída em atendimento àquele preceito constitucional, enumera os fatos geradores do ISSQN, dentre os quais: “Serviços de registros públicos, cartorários e notariais” (item 21 da respectiva lista anexa). A referida Lei Complementar, no que diz respeito à incidência sobre serviços de registros públicos, cartorários e notariais (item 21.01 da lista de serviços anexa à Lei Complementar 116/2003), foi declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal – STF no julgamento da ADI 3089, tendo a publicação ocorrido no DJE de 1º de agosto de 2008.
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ITENS 21 E 21.1. DA LISTA ANEXA À LEI COMPLEMENTAR 116/2003. INCIDÊNCIA DO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA – ISSQN SOBRE SERVIÇOS DE REGISTROS PÚBLICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS. CONSTITUCIONALIDADE.
Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada contra os itens 21 e 21.1 da Lista Anexa à Lei Complementar 116/2003, que permitem a tributação dos serviços de registros públicos, cartorários e notariais pelo Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN.
Alegada violação dos arts. 145, II, 156, III, e 236, caput, da Constituição, porquanto a matriz constitucional do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza permitiria a incidência do tributo tão-somente sobre a prestação de serviços de índole privada. Ademais, a tributação da prestação dos serviços notariais também ofenderia o art. 150, VI, a e §§ 2º e 3º da Constituição, na medida em que tais serviços públicos são imunes à tributação recíproca pelos entes federados.
As pessoas que exercem atividade notarial não são imunes à tributação, porquanto a circunstância de desenvolverem os respectivos serviços com intuito lucrativo invoca a exceção prevista no art. 150, § 3º da Constituição. O recebimento de remuneração pela prestação dos serviços confirma, ainda, capacidade contributiva.
A imunidade recíproca é uma garantia ou prerrogativa imediata de entidades políticas federativas, e não de particulares que executem, com inequívoco intuito lucrativo, serviços públicos mediante concessão ou delegação, devidamente remunerados.
Não há diferenciação que justifique a tributação dos serviços públicos concedidos e a não-tributação das atividades delegadas.
Ação Direta de Inconstitucionalidade conhecida, mas julgada improcedente.
Não mais cabe discussão, portanto, sobre a constitucionalidade da incidência do ISSQN sobre os serviços cartorários. Mas o Supremo Tribunal Federal não definiu como seria a incidência do ISSQN. Em razão disso, os titulares dos serviços notariais e de registro buscaram discutir esse aspecto da cobrança, tendo sido defendido que o ISSQN não poderia ser cobrado considerando como base de cálculo o preço do serviço. A ideia, que inicialmente foi bem recebida nos tribunais, foi defender que se aplicava o Decreto-Lei nº 406/68, que, em seu art. 9º, § 1º, ressalva que, quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho. A norma inserta no art. 9º, § 1º, do Decreto-lei nº 406/68 foi recepcionada pela Constituição da República de 1988 e não foi revogada com o advento da LC nº 116/03, sua aplicação a notários e registradores será detalhada no item 2.1.1.
A complexidade na análise do ISSQN se deve ao fato de que, como se trata de imposto municipal, a sua cobrança varia conforme a legislação de cada Município, sendo preciso, portanto, examinar o tratamento legislativo dado aos serviços cartorários por cada Município. Para que haja a cobrança do ISSQN sobre os serviços cartorários, não basta a previsão constante da Lei Complementar nº 116/2003, sendo preciso que lei municipal incorpore tal previsão. Se a legislação municipal não prevê a incidência do ISSQN sobre os serviços notariais e de registros, até que isso ocorra, o Município não pode cobrar o imposto de notários ou registradores. Já no caso de Municípios que acrescentaram o item 21.01 da LC nº 116/2003 à sua lei tributária local, há duas situações distintas a serem analisadas, que serão detalhadas abaixo: Municípios que adotam a incidência do ISSQN sobre o preço do serviço e Municípios que adotam a incidência do ISSQN sobre base fixa ou valor fixo anual:
2.1 Municípios que adotam a incidência sobre o preço do serviço
Nos Municípios que acrescentaram o item 21.01 da LC 116/2003 à legislação municipal, inicialmente entendeu-se que seria possível questionar ser o preço do serviço a base de cálculo do ISSQN, uma vez que notários e registradores são pessoas físicas que atuam na forma de trabalho pessoal, como os demais profissionais autônomos, razão pela qual somente pode ser lançado o tributo mediante valores fixos e não sobre o total do seu faturamento. Os argumentos jurídicos para tanto serão relacionados no tópico 2.1.1.
Essa opção parecia interessante até que o Superior Tribunal de Justiça – STJ uniformizou sua jurisprudência no sentido de que a base de cálculo do ISSQN para notários e registradores é o preço do serviço, não se aplicando o art. 9º, § 1º, do Decreto-lei nº 406/68. Trataremos da jurisprudência do STJ no item 2.1.3. Assim, a discussão judicial provavelmente não terá bom resultado, o que deverá ser avaliado pelo notário ou registrador. Se ainda assim o titular optar pela discussão judicial, tem 2 opções:
TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA DAS PESSOAS JURÍDICAS. APURAÇÃO DO LUCRO REAL. IMPOSSIBILIDADE DE DEDUÇÃO DE DESPESAS RELATIVAS A TRIBUTOS CUJA EXIGIBILIDADE ESTEJA SUSPENSA, HAJA OU NÃO DEPÓSITO JUDICIAL.1. Os arts. 7º e 8º da Lei 8.541/92 não contrariam as disposições do Código Tributário Nacional, porquanto o depósito judicial é efetuado como garantia do juízo, para suspender a exigibilidade de um crédito tributário, não caracterizando pagamento de tributo, razão pela qual não pode ser deduzido para o fim de apuração do lucro real – base de cálculo do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas.2. Recurso especial desprovido (REsp 636.093/MG, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/08/2007, DJ 17/09/2007 p. 209 TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. ART. 43 DO CTN. ARTS. 7º e 8º DA LEI 8.541/92. IMPOSTO DE RENDA DE PESSOA JURÍDICA. LUCRO REAL. DEPÓSITO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE DE DEDUÇÃO DE DESPESA. PRECEDENTES.1. “A disposição contida no art. 7º da Lei n. 8.541/92 – a qual determina que, para fins de apuração de imposto de renda, as provisões designadas para pagamento de impostos e contribuições não podem ser deduzidas como despesas para o fim de apuração do lucro real – não se incompatibiliza com o ordenamento jurídico de regência” (REsp 395654/SC, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJ 06/04/2006).2. Precedentes: REsp 636093/MG, Rel. Min. Denise Arruda, Primeira Turma, DJ 17/09/2007; AgRg no Ag 427.915/SP, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, Segunda Turma, DJ 02/05/2005; REsp 438624/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 04/10/2004; REsp 177.734/PR, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, DJ 10/03/2003.3. Agravo regimental não provido (AgRg no Ag 1110028/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/06/2009, DJe 01/07/2009).
A pior opção é não fazer nada: não pagar o imposto e não discutir em juízo. Não pagar o imposto gera uma série de conseqüências prejudiciais ao notário ou registrador: incidência de multas, juros, possibilidade de penhora de bens.
O titular deve averiguar se quer mesmo discutir a cobrança do ISSQN e, se assim decidir, deve ajuizar a ação anteriormente à cobrança pelo Município. Dessa forma, há tempo para agir conscienciosamente e não precipitadamente: contratar um bom advogado, analisar a legislação municipal, verificar a disponibilidade financeira ou angariar recursos para pagar ou tributo ou fazer o depósito judicial.
Na hipótese de nada ter sido feito e de o notário ou registrador ser citado em execução fiscal, cabe esclarecer que o prazo para embargos à execução é de 30 (trinta) dias contados do depósito ou da intimação da penhora – art. 16 da Lei 6.830/80 – LEF. Após a entrada em vigor do novo CPC, o entendimento que vem sendo mais aceito pela doutrina é que o prazo é de 30 (trinta) dias úteis, já que a LEF não menciona dias corridos e há aplicação subsidiária do novo CPC. Nesse sentido tem decidido o TJMG.[1]
Também é possível optar pela exceção de pré-executividade, que não está condicionada a depósito judicial, mas não suspende a exigibilidade do crédito tributário. Para a exceção de pré-executividade, não há previsão legal de prazo, podendo, conforme a doutrina, ser apresentada até o trânsito em julgado da execução. No entanto, caso não seja interposta na primeira oportunidade cabível, o executado poderá ter seus bens penhorados. Além disso, na exceção somente cabe discussão sobre matéria de direito, não sobre matéria de fato, conforme Súmula 393 do STJ, segundo a qual: “A exceção de pré-executividade é admissível na execução fiscal relativamente às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória” – DJe 07/10/2009. Mesmo após a entrada em vigor do novo CPC, a exceção de pré-executividade continua a ser admitida. Nessa peça deverão ser indicados os vícios do título executivo: ilegalidade, existência de prescrição, entre outras matérias de ordem pública (pressupostos processuais, legitimidade e condições da ação executiva), que já poderiam ser identificadas e conhecidas de ofício pelo juízo, sem a necessidade de estabelecimento do contraditório, podendo ser discutidas de questões de mérito, quando houver prova pré-constituída das alegações.
2.1.1 Apesar da posição uniforme do STJ, há argumentos que fundamentam a impossibilidade dos emolumentos constituírem base de cálculo do ISSQN:
Notários e registradores vinham obtendo sucesso ao questionar judicialmente a cobrança pelo preço do serviço, pois: são pessoas físicas; a forma de trabalho é pessoal, logo o lançamento do tributo deveria ser mediante valores fixos (DL nº 406/68) Hoje a tese não vem sendo acolhida, em razão da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ, que será posteriormente analisada, mas que, no entendimento da melhor doutrina, está equivocada. Assim, é importante entender os argumentos que demonstram a impossibilidade dos emolumentos constituírem base de cálculo do ISSQN.
Pela própria lógica que deve envolver o sistema jurídico, não é possível que notários e registradores ora sejam tributados como pessoa física (pela Receita Federal), ora como jurídica (pelo Município), sendo-lhes sempre aplicado o pior tratamento tributário, conforme a conveniência do ente tributante. Foi exatamente para evitar situações como essa que o artigo 146, III, “a”, da Constituição da República determinou que cabe a lei complementar federal estabelecer normas gerais para definição de contribuintes e base de cálculo de tributos. E a lei complementar federal já determinou que a tributação de notários e registradores deve ser feita na pessoa física.
De fato, a legislação federal dá tratamento de pessoa física aos titulares de serviços notariais e de registro, determinando que esse titular se sujeite ao imposto de renda da pessoa física – IRPF, no regime caixa, conforme Lei Federal nº 7.713, de 22 de dezembro de 1988, arts. 1º e 3º e seu § 4º; Decreto Federal nº 3.000, de 26 de março de 1999, art. 45, IV e art. 21, III, da Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal nº 15, de 6 de fevereiro de 2001 – IN SRF 15/2001.
O tratamento dado pela legislação federal a notários e registradores é idêntico àquele dado aos exemplos clássicos de profissionais liberais, como médicos, engenheiros e advogados, quanto aos quais não há dúvida sobre a aplicação da regra de cobrança prevista no art. 9º, § 1º, do Decreto-lei nº 406/68. A legislação federal relativa ao imposto de renda observou o que determina a norma constante do art. 110 do CTN, segundo a qual a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias. O notário e o registrador são pessoas físicas e como tais têm que ser tratados por todos os entes da federação.
Cabe ressaltar que o STJ tem jurisprudência pacífica no sentido de que os cartórios extrajudiciais são instituições administrativas, ou seja, entes sem personalidade, desprovidos de patrimônio próprio, razão pela qual, bem de ver, não possuem personalidade jurídica e não se caracterizam como empresa ou entidade, razão pela qual é a pessoa física do titular que responde pelos atos que praticar, sendo difícil entender como pode haver controvérsia sobre a tributação poder considerar o referido titular como uma pessoa jurídica:
RECURSO ESPECIAL – NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL – NÃO OCORRÊNCIA – SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO – NATUREZA JURÍDICA – ORGANIZAÇÃO TÉCNICA E ADMINISTRATIVA DESTINADOS A GARANTIR A PUBLICIDADE, AUTENTICIDADE, SEGURANÇA E EFICÁCIA DOS ATOS JURÍDICOS – PROTESTO – PEDIDO DE CANCELAMENTO – OBRIGAÇÃO DE FAZER – TABELIONATO – ILEGITIMIDADE DE PARTE PASSIVA RECONHECIDA – AUSÊNCIA DE PERSONALIDADE – RECURSO IMPROVIDO.[…]II – Segundo o art. 1º da Lei n° 8.935/94, que regulamentou o art. 236 da Constituição Federal, os serviços notariais e de registro são conceituados como “organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”. Dispõe, ainda, referida Lei que os notários e oficiais de registro gozam de independência no exercício de suas atribuições, além de que estão sujeitos às penalidades administrativas previstas nos arts. 32, 33, 34 e 35, no caso de infrações disciplinares previstas no art. 31 da mesma Lei.III – Os cartórios extrajudiciais – incluindo o de Protesto de Títulos – são instituições administrativas, ou seja, entes sem personalidade, desprovidos de patrimônio próprio, razão pela qual, bem de ver, não possuem personalidade jurídica e não se caracterizam como empresa ou entidade, afastando-se, dessa forma, sua legitimidade passiva ad causam para responder pela ação de obrigação de fazer.IV – Recurso especial improvido. – REsp 1097995 / RJ
RECURSO ESPECIAL 2008/0239711-7 – Relator Min. MASSAMI UYEDA – DJe 06/10/2010. No mesmo sentido o acórdão proferido em 2018 cuja ementa abaixo se reproduz: Ementa: PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CARTÓRIO DE REGISTRO CIVIL. AUSÊNCIA DE PERSONALIDADE JURÍDICA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. IMPOSSIBILIDADE DE SE AVALIAR A CULPA DO TITULAR DO CARTÓRIO POR IMPLICAR EM REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO. AGRAVO INTERNO DA FAZENDA NACIONAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. É firme a orientação desta Corte no sentido de que os cartórios e serventias notariais não detêm personalidade jurídica, de modo que são partes ilegítimas para figurar no polo ativo/passivo de demanda em que se discute dívidas tributárias. Precedentes: AgInt no REsp. 1.609.019SP, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 13.10.2016; AgInt no REsp. 1.441.464/PR, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, DJe 28.9.2017.2. Vale ressaltar que a via estreita do Recurso Especial é inadequada para se avaliar a culpa do titular do cartório no preenchimento das guias, consoante requerido pela FAZENDA NACIONAL. Tal implica em revolvimento de conjunto fático-probatório dos autos. 3. Agravo Interno da FAZENDA NACIONAL a que se nega provimento. (AgInt no REsp 1561117 / PR
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL
2015/0257298-6; Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO; 1ª Turma; DJe 14/03/2018)
A norma inserta no art. 9º, § 1º, do Decreto-lei nº 406/68 foi recepcionada pela Constituição da República de 1988 e não foi revogada com o advento da Lei Complementar nº 116/03. Dessa forma, no caso de “trabalho pessoal do próprio contribuinte” a receita de emolumentos não pode ser utilizada como base de cálculo do ISSQN.
Notários e registradores prestam serviços sob a forma de trabalho pessoal, porque realizam serviços notariais e de registro, os quais, de acordo com o artigo 236, da Constituição da República, e artigos 3º e 14 da Lei nº 8.935/94, são de caráter privado por delegação do Poder Público. A delegação conferida pelo Estado é outorgada em caráter pessoal àquele notário ou registrador, sendo vedada sua alienação ou transferência – somente ele poderá exercer a atividade.
O fato de notários e registradores poderem contratar terceiros (auxiliares e escreventes) para auxiliá-los na prática da atividade, não é indicativo de atividade empresarial ou comercial, e tampouco retira do serviço a sua conotação de pessoalidade. Auxiliares e escreventes atuam em nome do notário ou registrador, tanto que os artigos 21 e 22, da Lei nº 8.935/94, determinam, respectivamente, a responsabilidade pessoal do titular do serviço pelo gerenciamento administrativo e financeiro, e a responsabilidade pessoal do titular pelos danos causados a terceiros, ainda que os danos tenham sido ocasionados por prepostos do oficial ou tabelião.
A prestação do serviço sob a forma de trabalho pessoal, ainda que suscetível de auxílio de terceiros, aliada à responsabilidade pessoal derivada da lei disciplinadora dos serviços notariais e de cartório, aponta para a correção da incidência da regra de exação especial, inserta no art. 9º, § 1º, do Decreto-lei nº 416/68. Assim é que a tributação deve ser entendida apenas sobre o trabalho pessoal daquele que responde pela delegação e a cobrança do ISSQN de notários e registradores deve se dar da mesma forma feita para os demais profissionais autônomos e liberais: ISSQN sobre base fixa ou valor fixo anual (art. 9º, § 1º, do Decreto-Lei nº 406/68).
Apesar de estarmos convictos da correção da tese acima, o STJ não a acolheu (a jurisprudência do STJ será tratada no item 2.1.3).
2.1.2 Doutrina
A doutrina vem esclarecendo que efetivamente a modalidade de tributação relativa ao ISSQN para notários e registradores somente pode ser aquela prevista no § 1º, do art. 9º, do Decreto-Lei nº 406/68, como ensina Aires F. Barreto:
[…] a opção por um ou
outro regime pressupõe a análise de como esses serviços são prestados. Considere-se, inicialmente, o teor do art. 236 da Constituição: ‘Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público’. A este acresça-se o disposto no art. 3º da Lei 8.935/94, verbis: ‘Notário, ou tabelião, e oficial de registro ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro’ e o disposto no art. 22 dessa mesma Lei, relativo à responsabilidade personalíssima desses profissionais pelos danos que eles e seus prepostos possam causar a terceiros. Corroboram o caráter pessoal desses serviços, as normas relativas ao imposto sobre a renda e às contribuições sociais.
[…] diante disso, a interpretação entrelaçada e harmônica desses preceitos, acrescida do fato de que também o patrimônio (bens móveis e imóveis onde são prestados os serviços) pertence a esses
profissionais isoladamente considerados, não integrando o patrimônio nem de cartórios nem de serventias conduz, indisputavelmente, a um só resultado: a modalidade de tributação só pode ser aquela prevista no §1° do art. 9º do Decreto-lei 406/68, qual seja a da prestação dos serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte. (BARRETO, 2009, p. 402) – sem negritos no original.
No mesmo sentido a doutrina de Hugo de Brito Machado:
1.2. Natureza peculiar da atividade
A prestação dos serviços notariais e de registro é uma atividade de natureza peculiar. É tipicamente estatal, mas é exercida em caráter privado, mediante delegação do Poder Público.
Não se trata de atividade econômica que, por razões de segurança nacional ou de relevante interesse social, conforme definido em lei, seja exercida diretamente pelo Estado. Absolutamente inaplicável, portanto, a regra do art. 173, § 1º, inciso II, da CF/88, que submete o exercício de tais atividades ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações tributárias.
Trata-se, isto sim, de uma atividade tipicamente estatal que, por força de dispositivo expresso da Constituição, deve ser exercida em caráter privado, por
pessoa física ou natural especialmente qualificada. Jamais por pessoa jurídica ou entidade a esta equiparada. Daí decorrendo a pessoalidade na prestação de tais serviços.
1.3. Pessoalidade dos serviços
Realmente, a Constituição Federal deixa fora de dúvidas a pessoalidade dos
serviços, ao estabelecer expressamente que o ingresso na atividade notarial e de registro depende de aprovação em concurso público de provas e títulos. Isto, aliás, considerada a supremacia da Constituição Federal, é suficiente para elidir a pretensão dos Municípios de tributar tais serviços como prestados por empresa. Em outras palavras, afasta defìnitivamente a idéia de tratar-se de atividade econômica ou empresarial, pois a exigência de concurso público é absolutamente incompatível com a idéia de atividade empresarial.
É irrelevante o fato de o prestador do serviço notarial e de registro ter prepostos ou empregados, pois estes atuam sob direta e inafastável responsabilidade do titular do cartório.
Aliás, mesmo antes do advento da atual Constituição, o Supremo Tribunal Federal manifestou entendimento no sentido de que o fato de o prestador do
serviço ter empregados não retira a pessoalidade dos serviços que presta. (STF, RE nº 88.21.0/RS). E, sendo assim,é inadmissível a qualificação do serviço notarial e de registro como atividade econômica ou empresarial, sobretudo porque, como adiante se verá, a qualificação pessoal do prestador desse serviço é inteiramente inafastável. (disponível em: . Acesso em 23 nov. 2012)